17.010 mulheres serão diagnosticadas com câncer de colo do útero apenas em 2023, segundo dados projetados pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), o que faz desse tipo de tumor o terceiro mais incidente entre as brasileiras. O também chamado câncer cervical é uma doença séria, cuja causa é uma infecção sexualmente transmitida (IST) provocada pelo papilomavírus humano, o HPV, especialmente os subtipos 16 e 18 que, juntos, somam 70% dos diagnósticos de câncer e lesões pré-cancerosas. E essa é justamente a minha área de atuação.
Hoje, passo metade do meu tempo dando aulas de pós-graduação nesses temas e nos momentos restantes atendo na clínica e faço cirurgias minimamente invasivas, especialmente das doenças pré-invasivas do colo uterino. Por isso, na minha prática diária, tenho bastante contato com o diagnóstico de HPV e a prevenção do câncer de colo de útero, acompanhando a evolução dos métodos diagnósticos empregados.
Acompanhe a entrevista completa com Flávio Zucchi aqui
Desde a minha formação em medicina, em 1976, e passando pelos anos 1990, quando fiz mestrado e doutorado na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM- Unifesp), acumulo mais de duas décadas estudando especificamente colposcopia e toda patologia do trato genital inferior da mulher.
Durante todo esse período e até hoje, o papanicolau ainda permanece sendo o exame de screening para o câncer de colo de útero mais feito no mundo inteiro por ser um método mais barato e mais acessível. Entretanto, a biologia molecular — que não é recente, vale a pena frisar — está se tornando cada dia mais acessível, com seus biomarcadores sendo usados para o diagnóstico precoce do HPV e, portanto, de uma possível lesão cancerosa.
“A tendência mundial hoje é que se substitua a citologia oncótica pela citologia em meio líquido para a identificação e hibridização do HPV”
Mas é importante deixar claro que os conceitos entre os dois métodos diagnósticos são muito diferentes entre si. Muito provavelmente, em um futuro próximo, o papanicolau deve ser substituído pela citologia em meio líquido, que identifica o DNA do HPV e, justamente por isso, é fundamental uma atenção maior do médico que está pedindo o exame para a interpretação do resultado de cada exame: enquanto a citologia oncótica é mais específica, a biologia molecular é muito mais sensível.
Por exemplo, quando há um esfregaço de citologia oncótica com resultado positivo, está claro que existe uma célula já infectada pelo HPV e portanto há uma IST estabelecida. O método me ajuda a constatar que o vírus entrou no núcleo da célula e a destruiu. Por outro lado, na citologia em meio líquido, a detecção da presença de DNA de HPV não significa uma infecção em si, mas apenas o risco de que ela aconteça. Essa diferenciação é essencial à prática clínica porque cerca de 80% das mulheres sexualmente ativas terão o vírus do HPV em algum momento de suas vidas. E nós, como médicos, temos que estar atentos ao risco de uma infecção que pode levar ao câncer.
Alguns anos adiante, com a popularização dos exames diagnósticos de biologia molecular estaremos aptos a selecionar as mulheres com alta carga viral detectada de maneira persistente para que realizem colposcopia e, possivelmente, até mesmo uma biópsia para que o diagnóstico do câncer de colo do útero seja concluído.
“O exame de papanicolau indica a presença da doença instalada. Já o PCR de HPV identifica o DNA viral e mostra o risco de a doença se instalar”
A presença do DNA de um vírus como o HPV não significa a presença da doença em si e isso precisa estar bem claro tanto para os profissionais de Saúde como para as pacientes. O vírus pode estar latente e ter um fragmento detectado pela sensibilidade do teste. É possível até que a mulher tenha esse DNA detectado durante toda a sua vida, sem que o câncer se desenvolva — algo que faz com que os patologistas aprendam a lidar com essa nova realidade e não exagerem nos pedidos de exames para detecção do risco.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), a Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (SOGESP) e até a Organização Mundial da Saúde (OMS) já prepararam diretrizes para a adoção do exames de biologia molecular para a identificação do risco de câncer cervical e muitos países desenvolvidos têm adotado essa prática em larga escala, pois conseguem absorver o maior custo desse tipo de kit diagnóstico.
A estratégia tem sido eficiente porque, ao final, reduz o número de colposcopias realizadas anualmente. No entanto, aqui no Brasil, a colposcopia é um exame barato e até faz parte da rotina anual de check-up ginecológico, sendo realizada em diversos laboratórios.
"Um grande cuidado dos ginecologistas é saber o momento certo de pedir o exame PCR para investigação de HPV e como interpretar o resultado para suas pacientes. Isso porque muitas vezes o exame é positivo sem que isso signifique o risco de uma IST ou do desenvolvimento de um câncer”
O HPV é a IST viral mais comum que existe, afetando mais da metade da população sexualmente ativa no Brasil [54,6% segundo um estudo recente da Fiocruz], mas como a doença é repleta de estigmas, é preciso que todos aprendam saibamos logo a separar bem o que é uma verruga genital de uma lesão pré-cancerosa e, principalmente, do risco de uma neoplasia se desenvolver.
A verdade é que uma verruga genital nunca vai virar um câncer do colo de útero, pois é causada pelo subtipo 6 do papilomavírus humano, enquanto os kits diagnósticos de biologia molecular costumam ter genotipagem que vão atrás dos sete subtipos de alto risco para uma neoplasia, entre eles os 16 e 18, considerados mais oncogênicos.
Em suma, prevenção do câncer cervical, seja da forma como for, é a medida de saúde pública mais importante para evitar um desfecho clínico de óbito para muitas mulheres, o que é altamente possível nesse caso, em que a doença leva cerca de dez anos para se desenvolver. Gosto de citar a importância da prevenção com esse dado: se uma mulher realizar ao menos um exame papanicolau ao longo da sua vida, o número de câncer de colo de útero no Brasil vai diminuir em 40%. Se isso acontecer junto com os exames de biologia molecular e mais a vacinação contra o HPV, então, estaremos verdadeiramente evitando o câncer em muitas mulheres.
*Depoimento de Flávio Zucchi concedido à jornalista Renata Armas, da agência essense.