Três grandes desafios devem determinar o controle e combate a pandemias nos próximos anos. O primeiro deles é a convergência entre populações humanas e de animais, seja pela alta produção de produtos de origem animal, pela ocupação de áreas até então desabitadas ou, ainda, pela existência de mercados de animais vivos. Um segundo aspecto preocupante é a queda da adesão da população às campanhas de vacinação — em 2021, 18 milhões de crianças no mundo não foram vacinadas contra difteria, tétano e coqueluche, um nível nunca visto desde 2005. E o mais alarmante: 62% dessas crianças vivem em 10 países, lista que inclui o Brasil.
Por último, as infecções causadas por bactérias resistentes provocam, ao menos, 1,27 milhões de mortes ao ano, segundo dados da OMS, um problema que afeta vários países. “Muitas doenças, que não repercutiam de maneira global, estão, agora, sendo trazidas para a população geral”, disse Denise Cardo, diretora do NCEZID (National Center for Emerging and Zoonotic Infectious Diseases), o Centro Nacional de Doenças Emergentes e Zoonóticas, agência vinculada ao Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.
A especialista esteve no Brasil neste ano, para palestrar no Congresso Brasileiro de Patologia Clínica (CBPC), e compartilhou o cenário atual do controle das pandemias no mundo, destacando as prioridades do NCEZID, que estuda e trabalha no combate a doenças como ebola, zika, dengue, malária, MERS-Cov, Covid-19 e HIV, entre outras. Ela foi enfática: “A gente imagina que sabe como as doenças são transmitidas, só que quem escreveu os capítulos dos livros que estamos vivendo fomos nós. Temos que estar preparados para o que não é esperado”.
Selecionamos, aqui, alguns dados e insights mais relevantes compartilhados por ela.
Em um mundo com 2,75 bilhões de passageiros, uma ameaça à saúde em qualquer lugar é uma ameaça à saúde em todo lugar. Uma só pessoa pode viajar a quase todos os centros urbanos dentro do período de incubação da maioria das doenças infecciosas, e uma doença pode ser transportada de uma vila isolada a uma grande cidade em menos de 36 horas. Os dados apresentados pela diretora do CDC dão o tom da ameaça que nos ronda: não há fronteiras imunes às próximas pandemias.
Enquanto a velocidade e o alcance geográfico da transmissão de doenças cresce exponencialmente, cerca de 70% das nações continuam despreparadas para gerenciar e controlar emergências de saúde, deixando gaps que tornam todo o planeta vulnerável a epidemias. Um grande exemplo disso é o vírus da dengue.
Cerca de metade da população mundial está, neste momento, sob risco dessa doença infecciosa, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti. A OMS estima que 100 milhões a 400 milhões de infecções ocorram todos os anos. A incidência da dengue cresceu dramaticamente em todo o mundo nas últimas décadas, passando de pouco mais de 500 mil casos no ano 2000 para 5,2 milhões de ocorrências em 2019. Embora seja uma doença característica de climas tropicais e subtropicais, ela tem se espalhado pelo mundo, alcançando áreas antes nunca atingidas na Europa, por exemplo.
Só nos Estados Unidos, mais de 2,8 milhões de infecções associadas à resistência antimicrobiana ocorrem anualmente, causando mais de 35 mil mortes, segundo o report "Antibiotic Resistance Threats", de 2019, do CDC. Mundialmente, contabiliza-se ao menos 1,27 milhões de mortes por ano — mais que HIV e malária. Este é, portanto, um dos maiores desafios da saúde pública no mundo.
Nesse contexto, Denise ressaltou que a área da Saúde precisa ser compreendida como uma fonte de infecções emergentes. Ela comentou sobre o chamado “medical turism”, praticado por pessoas que viajam à América Latina para realizar procedimentos estéticos, por exemplo, e voltam com infecções difíceis de se detectar.
"Não se trata só de responder às epidemias, o mais importante é o que a gente aprende disso", disse a diretora do NCEZID, mencionando os recentes surtos de ebola na República do Congo — foram três desde 2018. Graças à realização da sequência genômica do vírus, identificou-se que existem vários tipos de ebola, o que permitiu o desenvolvimento de novos testes e agilidade de detecção. "As inovações vão permitir que, nos próximos surtos, tenhamos maior capacidade de detecção e contenção", afirmou a especialista.
“Pela primeira vez, a minha divisão conseguiu financiar laboratórios de saúde pública para poder realmente aumentar a capacidade de detectar resistência antibacteriana. E isso está sendo muito interessante. Se tivermos a intenção de lidar com essas emergências, temos que trabalhar em conjunto”, alertou Denise, referindo-se à colaboração entre agências de saúde pública, organizações de saúde, clínicas e laboratórios.
Ela também colocou luz sobre as desigualdades e disparidades do acesso aos serviços de saúde. "Pois, se há populações que não têm acesso a tratamento e cuidado — não têm a oportunidade de realizar um teste, por exemplo —, elas serão um risco para todos".
Dados não servem para nada se você não compartilhá-los com as pessoas para a ação, como lembrou a especialista. "Quando aparece uma publicação sobre resistência a determinada bactéria, eu pergunto: 'já falou com o programa de saúde pública?'. Está tudo ligado. Essa comunicação está ajudando a descobrir fatores que são interligados entre países".
A comunicação clara e assertiva é um fator determinante para a contenção de futuras pandemias, ressaltou Denise:"A desinformação circula mais rapidamente que a informação correta e nós temos a responsabilidade de informar as pessoas".
"Depois de 30 anos de CDC, as pessoas me perguntam: o que você acha que tem que mudar? Muita coisa, mas, principalmente, as nossas expectativas e o que se chama de accountability [comprometimento e responsabilidade de cada um]. Ficou muito fácil falar no jornal ou na TV quantas mortes a Covid ou a Influenza deixaram. Ouvir "milhões" virou rotina, mas esses números representam pessoas e famílias, e isso é crítico para mudar a nossa atividade".