Já faz algum tempo que observo um comportamento que me inquieta bastante. Chega a me causar até certo sofrimento. Na cultura brasileira, saltamos aos extremos: elogiamos com entusiasmo uma atitude, mas que, na mesma medida, é alvo de uma enxurrada de críticas logo na primeira oportunidade. Neymar, Eike Batista e tantos outros brasileiros - famosos ou anônimos - já foram dos céus a lama pela opinião pública. Para me explicar melhor, vou me atear aqui ao tênis, que é um dos meus esportes favoritos.
Em abril, acompanhei de perto, no Ginásio do Ibirapuera (São Paulo), a Copa Billie Jean King, um torneio feminino no qual cada competidora representa seu próprio país. Neste ano, o Brasil enfrentou, veja só, a Alemanha. Eu vi Bia Haddad Maia e Carol Meligeni jogarem muito por lá, mas o Brasil acabou perdendo para o adversário antes de chegar à fase final.
Lembre-se de que, no passado, Bia era considerada uma das principais atletas brasileiras. Neste 2024, no entanto, enfrenta uma onda impiedosa de críticas por seu desempenho abaixo do esperado nas competições, em uma intensidade que me parece desproporcional.
A destruição que o brasileiro faz do legado do outro - seja ele um artista ou um colega de trabalho - é avassaladora. E muitas vezes isso acontece, ironicamente, logo depois um reconhecimento exacerbado de seus feitos
Eu sempre achei que a origem desse comportamento vinha de nossa herança católica, na qual uma pessoa só é merecedora de algo após enfrentar inúmeras provações que comprovem seu caráter. Mas eu estava enganado. Até porque, se isso fosse verdade, outras nações de mesma tradição religiosa seriam tão (ou mais) afetadas por tal fenômeno que o Brasil. Mas não é isso que acontece. Posso falar de minha última viagem para a Argentina, no feriado de Páscoa.
Há 20 anos eu não visitava o país. Aproveitei para visitar o cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e ver o túmulo de Evita Perón, a mais amada ex-primeira dama argentina. Ao redor de seu mausoléu, outras sepulturas mostravam o mesmo perfeito estado de conservação. Independentemente do que todas aquelas pessoas fizeram em vida - até mesmo a ex-mulher de um dos estadistas mais autoritários do mundo - todos tinham ali a sua memória preservada e enaltecida pelo povo argentino, como uma menção honrosa à história desses indivíduos, que de maneira alguma foi feita só de glórias. E não foi apenas no cemitério da Recoleta que notei esse apreço dos argentinos por seu patrimônio histórico e cultural.
Todo mundo vai errar, em algum momento. Nem sempre é possível repetir um mesmo desempenho fantástico do passado. Mas o ato de criticar ou reconhecer o legado de alguém é sempre uma escolha de cada um
Ao pensar bastante sobre tudo isso, me deparei com uma resposta possível ao questionamento que me assalta: por que? Por que somos assim? Roberto DaMatta, antropologista e filósofo brasileiro que ainda dá aula na PUC-RJ, escreve desde 1979 sobre essas questões em livros importantes como “Carnavais, malandros e heróis” e “Você sabe com quem está falando?”. Para explicar esse comportamento do brasileiro, ele recorreu ao individualismo, e o fez antes de as redes sociais existirem. Ele disse: "No fundo, vivemos em uma sociedade onde existe uma espécie de combate entre o mundo público das leis universais e do mercado; e o universo privado da família, dos compadres, parentes e amigos".
Somos tão individualistas como nação que achamos que os nossos merecem todos direitos, com quase nenhum dever, enquanto que, lá fora, isso se inverte - os outros têm deveres, mas poucos direitos
Por isso, como uma proposta de reflexão, quero convidar você que chegou até aqui comigo nesse raciocínio a (tentar) identificar: em quais momentos da sua vida esse nosso traço cultural se fez presente? Eu tenho feito essa análise, nos últimos tempos, em todos os aspectos da minha vida, desde questões pessoais até o ambiente de trabalho.
É hora de entender que, cada vez que reivindicamos um direito, ele automaticamente traz um dever - e vice-versa. E ainda não estamos conversando sobre isso.
***
Em tempo, enquanto eu escrevia esse texto, li uma matéria que falava sobre um sommelier de cemitérios. O nome dele é Paulo Albuquerque e ele viralizou nas redes sociais ao fazer tours pelos cemitérios do Rio de Janeiro criticando alguns dos túmulos das personalidades mais famosas, entre elas Cazuza, Tom Jobim e até Santos Dumont. Se você ainda não viu, confira aqui.
Leia também:
O papel dos laboratórios regionais no combate às doenças infecciosas
*Marcos Philippsen é country lead na EUROIMMUN Brasil, empresa de diagnóstico in vitro que une o saber científico, a excelência e o comprometimento com a vida para acelerar os avanços da medicina diagnóstica e, assim, construir uma sociedade mais saudável para todos.