NÃO CONTÉM GLÚTEN. Essa frase que todos nós acostumamos a ler em rótulos de produtos industrializados salvou - e ainda salva - muitas vidas. Mas nem sempre foi assim. Antes da década de 1990, pacientes celíacos - e seus familiares - precisavam estudar a fundo, e sozinhos, a lista de ingredientes antes de comprar um alimento. Foi só em 1992 que uma lei nacional exigiu que a indústria alimentícia começasse a identificar, na embalagem, a presença da proteína derivada de trigo, centeio, malte, cevada e aveia, com um alerta de letras grandes e chamativas.
Mas, para mim, que na época já estudava a doença celíaca há certo tempo, isso ainda era insuficiente. Por isso, logo me ocorreu pesquisar qual era o laboratório nacional responsável pela dosagem e detecção desta proteína nos alimentos. Imagine só: eu não encontrei nenhum.
O ano era 1997 e eu ainda fazia o meu doutorado na Escola Paulista de Medicina, na Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), mesmo local onde me formei, fiz minha residência, mestrado e doutorado. Aproveitei a investigação e decidi realizar um doutorado sanduíche na Universidade Autônoma de Madri (UAM), justamente para aprender a técnica laboratorial de detecção de glúten nos alimentos, com uma professora especializada em exames de bancada para esse fim.
Quando retornei ao Brasil, decidi usar todo esse aprendizado para realizar exames na gastropediatria. E, com o apoio da Dra. Isabel Scaletsky, especializada no método western blot (ele também é conhecido como imunoblot de proteínas ou transferência western), fizemos muitos e muitos exames com essa técnica, e também com ELISA, para a detecção de glúten, tanto em produtos industrializados quanto em receitas preparadas pelos próprios celíacos. O objetivo era saber se, de fato, as pessoas sabiam eliminar de vez esse ingrediente de suas refeições. O trabalho foi publicado como minha tese de doutorado e, para quem quer conhecer os resultados, é só dar uma olhada aqui.
Mas aproveito para contar mais um fato curioso sobre essa história. Pouco tempo depois que defendi a minha tese, o então ministro da Saúde, José Serra, visitou a EPM, e eu aproveitei a oportunidade para contar a ele os resultados da pesquisa, deixando claro a falta de laboratórios brasileiros para fiscalizar a quantidade de glúten dos alimentos. E sabe o que aconteceu? Dias depois eu recebi um telefonema de um assessor para confirmar que eu receberia uma verba - grandiosa na época - para criar o primeiro laboratório de detecção de glúten nos alimentos do Brasil, que até hoje está no departamento de Gastropediatria da EPM.
Deu para perceber que minha relação com a doença celíaca vem de longa data. E, além de pesquisar muito sobre a doença em si, sempre estive muito próxima dos pacientes e desenvolvi um carinho muito grande por todos eles. Desde 1995, sou assessora técnico-científica da Associação de Celíacos do Brasil - seção São Paulo e, em 2006, passei a exercer o mesmo cargo na Federação Nacional dos Celíacos do Brasil.
A doença celíaca, para quem não sabe, é uma enfermidade sistêmica autoimune desencadeada pelo consumo do glúten, e já foi considerada uma doença rara. Hoje, no entanto, sabe-se que é a intolerância alimentar de base genética mais comum no mundo, com prevalência de 1% da população geral, de acordo com a OMS, e uma proporção de 2:1 de mulheres para homens.
Só que essa prevalência tem sido subestimada. A doença celíaca ainda apresenta subnotificação em muitos países, inclusive no Brasil, e uma das razões para isso é a dificuldade do diagnóstico clínico, já que, com tantos sintomas inespecíficos, muitos médicos de diversas especialidades sequer pensam na doença celíaca enquanto analisam seus pacientes.
Por isso, vamos deixar claro que as manifestações clínicas que podem indicar a doença celíaca, em qualquer faixa etária, podem ser divididas em três grupos:
“A manifestação clínica clássica da doença celíaca acontece em um paciente com 15 meses de idade, que apresenta diarreia crônica, flatulência excessiva, barriga inchada, glúteo atrofiado e com sobras de pele, porque a criança perdeu essa musculatura, membros superiores e inferiores afilados e com sinais de irritação ou apatia”
A literatura médica confirma que o diagnóstico baseado apenas em critérios clínicos, levando-se em consideração apenas as manifestações gastrointestinais, mostram-se incorretos em mais de 50% dos casos. Por isso, a retirada do glúten da dieta de um paciente sem ter o diagnóstico correto não deve ser feita nunca. Todo médico, seja ele clínico ou pediatra, pode e deve solicitar exames laboratoriais para investigar anticorpos de doença celíaca antes de indicar a suspensão da proteína.
Eu já somava alguns anos de experiência em diagnóstico clínico da doença celíaca quando quis aprender a fazer as técnicas laboratoriais existentes. Por isso, em 2001, escolhi fazer meu pós-doutorado com o Dr. Alessio Fasano, em Maryland (EUA). Na época, os exames diagnósticos disponíveis já eram bastante sensíveis e específicos para a detecção da doença celíaca. Entre eles:
Mesmo com opções tão sensíveis, os pesquisadores continuaram a buscar um exame sorológico que fizesse o diagnóstico da doença celíaca, e chegaram ao anticorpo antigliadina deaminada, das classes IgG e IgA. Mas, logo perceberam que a sensibilidade desse teste era igual à do anticorpo antitransglutaminase, e não superior. Hoje, portanto, são ferramentas úteis para crianças menores de dois anos de idade, já que os outros testes que eu citei podem resultar em falsos negativos nessa população.
Lembrando que apenas pacientes com deficiência total de IgA (um número inferior a 7 ou a 6, dependendo do laboratório) terão os testes de anticorpo antitransglutaminase da classe IgA ou de anticorpo antiendomísio da classe IgA com resultados falsos negativos. Esse grupo soma 2% do total de pacientes celíacos.
Hoje, médicos clínicos que suspeitam da presença da doença celíaca costumam começar a investigação diagnóstica com os testes de anticorpos antitransglutaminase da classe IgA e a imunoglobulina A, para já saber se o paciente tem essa deficiência total. Esses exames, no entanto, são uma fotografia do que está acontecendo naquele momento no corpo dos pacientes e servem apenas para rastreamento, indicando indivíduos que possam ter a doença. A confirmação definitiva virá somente com a biópsia de intestino delgado resultando em atrofia e linfocitose intraepitelial. E só aí se começa o único tratamento possível: tirar o glúten da dieta.
*Depoimento de Vera Lucia Sdepanian concedido à jornalista Renata Armas, da agência essense.